quarta-feira, 25 de março de 2015

A primeira perda

Criança famélica                 Josué de Castro
Bigóia era um menino raquítico, filho mais novo de lavradores. Moravam, plantavam e criavam algumas poucas cabeças de gado - que mal alimentavam aquela numerosa família - nos fundos da única padaria do lugar. Eu também era magricela, acho que isso nos aproximava. O futebol, sem dúvida, era outro ponto de aproximação entre nós. Éramos frágeis diante dos meninos de mesma idade para enfrentar o bullying. Mas a bola nos permitia fazer a diferença. Estávamos quase sempre no mesmo lado, mesmo time. 
Tempos depois pude elaborar meu pensamento sobre aquela conjuntura onde vivíamos. Aquela casinha de taipa com paredes pendentes denunciavam as condições de Bigóia, seus irmãos e seus pais. Foi aí que pude entender as condições insalubres daquela gente. Os animais também demonstravam seu estado de carências. Viam-se as costelas desenhadas sob a pele. As vacas mal produziam leite para seus bezerros não desmamados. Era um cenário lúgubre, mas em tempos de criança a gente vê com outros olhos. Não se adentra na agonia alheia ainda que aparente. O mundo era composto pelas horas de acordar, das refeições, das brincadeiras e de dormir.
Naquele dia notei que algo anormal acontecera. Havia gente circulando, ninguém na lida com a plantação nem com aqueles animais famélicos. Não havia alegria nem choro, só um movimento de pouca gente entrando e saindo, nada estava como antes. Eu levara a bola, como de costume, mas fui avisado por colegas que Bigóia não sobrevivera a uma pneumonia. Embora não houvesse choro, o ambiente denunciava tristeza. Era como se fosse normal a partida de um ente. Naquelas condições talvez fosse um alívio pela falta de acesso ao mais básico do básico. Comida, ali, não era item cotidiano. Pelo menos comida que mantivesse o corpo alentando a alma.
E foi assim, sem nenhuma lágrima nos rostos compenetrados, que vi aquela gente se despedindo do meu primeiro amigo fora da ambiência familiar. Só entendi o filme que se passara em minha mente, anos mais tarde, quando encontrei Josué de Castro em sua “Geografia da Fome”.

3 comentários :

  1. Que obra-prima! Meus parabéns!

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  2. Toda paisagem por ti descrita veio com um filme durante a leitura. Senti seu pesar e a iluminação tardia acerca de seu luto, Carlos .
    Fantástico texto.

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